segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

ENTRE A VITRINE E O ESTOQUE

Memórias de uma vendedora de shopping

Capítulo 11 - Pró-atividade de cu é rola
Não tem nada mais idiota que pensar que pró-atividade é algo bom.

Outro dia, eu inventei de ir à manicure. Pensei: vamos mostrar ao [gerente] que eu dou valor ao meu trabalho, invisto na minha imagem e tal.

Cheguei na loja toda pimpona, achando que ia ouvir uns elogios pela iniciativa. Mas não. O que levei foi um esporro pela cor do esmalte. Descobri que o [dono da loja] tinha umas regras de padrozinação e esmalte escuro era terminantemente proibido. "Amanhã não quero ver você com essa unha escura".

Enquanto me intoxicava com acetona no banheiro de casa à meia-noite e meia, jogando fora as duas horas e a grana que gastei no salão no meu dia de folga, fiquei tentando entender de onde veio a infeliz idéia de ser pró-ativa.

Mas a merda não pára aí. Porque eis que quando eu chego no dia seguinte, obedientemente sem meu esmalte que durou um dia, o [gerente] pede pra ver minhas unhas e diz "ué, você ficou sem nada?". Não era pra tirar o esmalte? "Era, mas não pode ficar sem nada. As vendedoras têm que estar sempre com as unhas feitas, regras da loja".

Tipo, aquela era a primeira vez que eu tinha feito manicure em todo o tempo em que trabalhava lá e agora era obrigação? "Sempre foi, mas você passou batida. A partir de hoje, quer ver suas unhas sempre impecáveis".

Eu mereci essa. Por que foi na minha cabeça que nasceu a idéia imbecil de ser pró-ativa.

sexta-feira, 20 de março de 2009

ENTRE A VITRINE E O ESTOQUE

Memórias de uma vendedora de shopping

Capítulo 78 - Na mira da idiotice

Uma hora eu estava pegando uma camisa da arara e, em menos de dez segundos, eu estava estatelada no chão, a nuca doendo e sangrando da coronhada. Desespero.

Ouvi uma voz histérica atrás de mim xingar o cliente à minha frente de cafajeste enquanto me fazia levantar pelos cabelos. Uma mão gelada, com unhas enormes agarrou meu braço e me afastou dele; a outra mão se esticava pela lateral do meu pescoço segurando a arma apontada para frente. O [cliente] a chamou pelo nome, incrédulo. Ela me colocou de lado, pude ver melhor a situação. Era a esposa dele.

A [doida] em si não me dava medo. Era baixinha, magra, franzina. Uma descontrolada, uma deprimida, mas não uma assassina. Um serzinho superficial movido a emoção. O problema é que, claramente, ela não sabia manejar uma arma. E não tinha nenhum plano.

Deve ter vindo aqui cheia de coragem na cabeça para pegar o marido no flagra, trazida por evidências que ele claramente não fez o menor esforço para esconder. Ele não devia dar muito crédito a ela. Mas, no fundo, devia desejar não encontrar nada e obviamente não estava preparada para agir diante da suspeita confirmada. Agora, com o revólver em punho, não tinha idéia do que fazer. E, por isso mesmo, podia fazer uma grande merda a qualquer momento.

O [cliente] freqüentava a loja havia uns três meses. Se engraçou comigo na primeira venda e começou a voltar com freqüência, sempre com um presente. Um hidratante da Victoria Secrets, um gloss da Mac. "Voltei de viagem e trouxe uma lembrança do freeshop". Era intragável, em aparência e atitude, mas garantia as vendas da loja (sempre levava uma camisa ou uma gravata da linha premium) e o [gerente] nunca me deixou ignorá-lo, mesmo sob protestos. Eu não podia perder o emprego. Agora, o [gerente] me encarava com arrependimento nos olhos e um medo absurdo de ser processado.

O [marido da doida] olhava para ela. "Você está sendo ridícula, [doida]. Abaixa essa merda e pára de me fazer passar vergonha", disse, tentando parecer calmo.

Os olhos dela, molhados, iam dele para mim e de mim para ele, raivosos, confusos. Eu não abri a boca. "Eu? Ridícula?? Ela tem idade para ser sua neta [marido da doida]!", a voz um pouco mais histérica que antes, as mãos tremendo.

Perua estúpida. O que tinha eu a ver com aquela vida de merda que ela vivia? Com suas depressões regadas a champagne, viagens a Miami e compras? Com seu marido cafajeste e nojento?

É óbvio que os seguranças do shopping estavam todos a postos a poucos metros, cinqüenta canos virados para mim. Bosta, bosta, bosta. Maldita [diretora regional responsável pela loja] que achou que um detector de metais seria um gasto inútil.

A [doida] me puxou para a área de provadores, assustada, e mandou todo mundo se afastar. Me posicionou à sua frente como um escudo e começou a chorar copiosamente. "Desculpa", sussurou depois de um tempo, sem largar minha roupa ensangüentada nem baixar a arma.

Eu precisava fazer alguma coisa.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

ENTRE A VITRINE E O ESTOQUE

Memórias de uma vendedora de shopping

Capítulo 31 - Semi-lembranças da balada

No ônibus, fiz um esforço pra ligar os pontos.

Uma das últimas lembranças que eu tinha era da noite anterior da pista. Com a lata do energético numa mão, a mente naquela tênue linha entre o alucinado e a bad trip, eu dançava ao som de Deeper Underground do Jamiroquai. Sentia a música percorrer meu corpo, estremecer minha nuca, me fazer mover braços, pernas, cintura compulsoriamente.

A calça skinny colada no corpo estava encharcada de suor, assim como o decote da regata de algodão. De cima de meu salto (saí direto da loja), eu me sentia poderosa. Balançava a cabeça chacoalhando o coque improvisado sem desmanchá-lo.

Percebi o [estoquista] chegando mais perto. Ele também estava alucinado. Talvez por isso, nossos corpos dançaram em sintonia perfeita. Eu me sentia bem. Depois do dia mais foda do ano, eu me sentia realmente bem.

Não me lembro de muito mais que isso. Lembro da sensação da barba dele roçando meu pescoço, dos lábios tocando minha orelha, das costas batendo na parede (mais tarde, no colchão).

Não sei o que era mais forte: a dor de cabeça ou a ressaca moral.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Eu + você = tudo

Na nossa casa somos só nós dois. E, incrivelmente, é o lugar em que me sinto menos só.
Na rua, no escritório, no bar, entre eu e a multidão tem muita coisa. Aí 1 + mil = nada.
Mas é com você que o quebra-cabeça fica completo. E as outras pecinhas nem me importam mais. 1 + 1 = tudo.
Aqui, eu de cabelos molhados esperando secar, blogando do meu lap, você ao meu lado lendo sobre o Everest.
E esse aqui ainda nem existem em matéria, mas já é meu lugar. Talvez por isso tenho me sentido tão incompleta por aí.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

ENTRE A VITRINE E O ESTOQUE

Memórias de uma vendedora de shopping

Capítulo 42 - Primeiro emprego

Chega uma hora em que a adolescência acaba e a gente começa a querer trabalhar.
Pra algumas pessoas é uma necessidade, pra ajudar em casa. Pra outras é aquela história de ter seu próprio dinheiro, não ter que ficar pedindo pros pais, dependendo de mesada. Eu tinha que pagar a faculdade.

Cada grupo social tem um padrão para o primeiro emprego. O pessoal mais pobre vai ser faxineiro, office boy, essas coisas. Tem gente que procura trabalho em escritório, atendimento em banco, aprendiz de qualquer coisa.
No meu círculo, as meninas iam trabalhar em loja de shopping.
Quando chegou a minha vez, foi pra lá que eu fui.

A verdade é que todo primeiro emprego é uma bosta, não importa a área. Além do trabalho em si ser sempre aquilo que ninguém mais quer fazer, Você ainda não sabe nada sobre nada e a empresa, que sabe disso, monta em cima.

A chefe inventa reunião, você vai. Inventa regra sem sentido, você segue. Diz que você não está se esforçando, você acredita. Faz de conta que seu cargo é disputado e importante pra te fazer se decidar e você fica lá, trabalhando com medo de ser mandado embora por qualquer coisa.

Mas a gente não sabe disso quando resolve trabalhar.

É por isso que eu fiz um currículo todo bonitinho, pus uma foto bonita e fui toda produzida entregar nas lojas. Mais de 50 lojas em 3 shopppings. Entrava toda sorridente, chamava o gerente entregava os papéis como se eu tivesse nascido para vender roupas.

Parecia uma ovelhinha retardada indo pro matadouro achando que, sei lá, tá indo pastar. E você só percebe o papel que fez quando vê outra pessoa fazendo o mesmo. Cada vez que entra uma embonecada toda sorrisos pedindo pelo gerente, eu tenho vontade de gritar "Corra enquanto pode!".

Mas fico quieta. Todo mundo tem que ter seu primeiro emprego de bosta. E o meu foi esse.

(Originalmente postado em 28/abr/07)

SUCH A BEAUTIFUL DAY

Uma sala branca vazia. O chão, de taco de madeira. As arestas revestidas por um rodapé combinando com o piso. De frente para a porta, uma janela ainda sem moldura. Uma tomada em uma das paredes, um interruptor de luz na outra e uma lâmpada no teto.
Entro, jogo a bolsa e algumas sacolas num canto, vou ver a rua. Pacata, arborizada. Uma padaria na esquina, uma praça mais adiante.
Meu bem chega em meia hora com a primeira parte da mudança: uma cama, alguns puffs para a sala, a TV que ganhamos dos padrinhos. Comigo vieram toalhas, objetos de banheiro, um relógio de parede.
O sol ameno do fim de tarde de janeiro vem esquentar meu rosto. Ô gostinho bom...

(Originalmente postado em 12/dez/07)

ENTRE A VITRINE E O ESTOQUE

Memórias de uma vendedora de shopping

Capítulo 13 - Colegas de trabalho

Meio tonta de sono e ressaca, abri os olhos. Vasculhei à minha volta com o olhar tentando identificar onde estava. A luz da manhã invadia o quarto por entre uma tira torta da veneziana na janela, iluminando só um filete do ambiente. O suficiente para evidenciar o pó que subia do carpete no chão, uma calça masculina da [nome da loja] jogada de qualquer jeito e a parede oposta. Vencendo o incômodo da lente de contato ressecada consegui ler a sigla rabiscada na tinta desgastada: LHP. “Caralho”.
Sabe aquela sensação de que você fez merda? O coração disparou e a adrenalina que jorrou no meu sangue afastou o sono rapidinho. Virei o rosto. Pelado, do meu lado, ele.

(Originalmente postado em 05/dez/07)