sexta-feira, 11 de julho de 2008

SCREAMING UNDERNEATH

"Ou é isso, ou entendi tudo errado".

Na sala pequena da biblioteca, por um momento nada se ouvia além daquelas respirações descompassadas.

Os últimos dias haviam sido bastante confusos para aquela moça. O interesse de um no outro era óbvio, mas poucos dias ao lado do rapaz foram suficientes para ela perceber que falavam línguas diferentes. É verdade que, desde que o conhecera, sentia-se constantemente desafiada a manter um fluxo de relacionamento com um mínimo de compreensão mútua. A última semana, porém, havia sido particularmente turbulenta.

Os silêncios deles se intercalavam havia dias, assim como a inquietude de querer saber o que se passava na cabeça do outro. Num súbito de coragem, atendeu ao pedido do rapaz e lhe entregou uma dúzia de páginas de seu diário, na tentativa de esclarecer um pouco aquela neblina. O resultado não havia sido tão bom...

Agora, sentada à mesa redonda, circundada por paredes de vidro, fitava seu par de all-stars surrado e ouvia o rapaz, angustiada, esbravejar sua surpresa acerca das descobertas e conclusões (equívocas, a seu ver) que resultaram daqueles papéis.

Inesperadamente, sentiu diluir o azedume que a embebia ao ouvir a pergunta, e viu se abrir uma brecha na parede que se estabelecera entre eles.

"Entendi tudo errado?", insistiu o rapaz, com uma ponta de esperança nos olhos revoltados. O nó na garganta jovem daquela moça se apertava contra sua vontade.

"Você entendeu tudo errado", conseguiu responder um tanto desafinada. Viu aquela faísca de esperança crescer no olhar do rapaz. Os músculos de seu rosto contraíam-se agora de maneira diferente, desfazendo a expressão quase agressiva dantes.

Por instantes, sentiu uma conexão direta se estabelecendo entre aquelas almas agitadas. Ansiosa, percebeu uma tímida alegria tomar forma dentro de si, e começou a acreditar que talvez conseguiria fazê-lo ver o que ela via.

Não entendia direito a ânsia de querer manter aquela relação. Mas não tinha muito tempo. Começou a tentar organizar a enxurrada de pensamentos desconexos que giravam sua cabeça.

"O que é então?", ouviu-o perguntar, a voz bem mais amena e vulnerável, colocando os óculos sobre a mesa.

Olhou-o nos olhos e tentou ¿ em vão ¿ balbuciar uma introdução; tropeçou em alguns pontos e não soube responder. Sentiu a inquietação voltar e, em pouco tempo, seu próprio silêncio parecia cortar-lhe por dentro.

"O que é então?", insistiu o rapaz, com a revolta retornando-lhe aos poucos. Ele realmente não entendera nada. Observando a gola suada da camisa pólo do rapaz, ela quis chorar. A consciência de que, se ao menos soubesse as palavras correspondentes aos seus pensamentos, poderia por fim aos ruídos que impediam que o rapaz a compreendesse lhe doía.

Nunca se sentiu tão incompetente em toda sua vida. "Que ironia", pensou, à medida que o desespero tomava-lhe novamente. Voltou a fitar as próprias mãos e percebeu que havia descascado metade do esmalte escuro de suas unhas. Lembrou-se das outras tantas páginas escritas em secreto naquele caderno discreto, das inúmeras cartas que escrevera e não chegara a enviar. Sentia na boca o gosto amargo do sarcasmo das palavras, antigas aliadas que agora lhe fugiam...

O ar tornava-se denso demais...

A esperança do garoto pareceu se desfazer. "Je ne te comprends pas", se pôs a falar novamente, inconformado. O tom de voz se intensificava. De vez em quando, a moça lhe respondia sentenças insuficientes, e desesperava-se, assistindo a muralha solidificar-se, cada vez mais alta, entre eles.

Dentre as imagens, sentimentos e impulsos que inundavam sua mente, ela ouvia um de seus cantores prediletos sussurrar " I know I'm dead on the surface, but I'm screaming underneath...".

De mãos atadas, ela chorou aquela noite, e sentiu-se ridícula. Sabia que apenas estabelecer um canal que possibilitasse que um compreendesse claramente o outro não bastaria para salvar o romance. Não era tão ingênua. Ainda assim, "Palavras traíras!", xingava silenciosamente.

Finalmente, ele decretou o fim (e, um tanto pretensioso, previu o depois).

Só então, como se um peso lhe fora tirado das costas, ela já não sentiu mais sobre si a responsabilidade de consertar o roto cordão que os ligava através do tal muro.

No âmago de colocar a angústia para fora, pôs-se a falar. Vomitou aos pés do rapaz todos os contra-argumentos que lhe vieram à cabeça, num surto de vulnerabilidade.

Percebeu, estupefata, a facilidade com que agora as orações se formavam. Como no fim de um suspense policial, em que o assassino, pego, na última tentativa de realizar seu propósito, revela detalhadamente seus planos e táticas. O que teria a perder?

Ele acompanhou calado seu choro, fitando o chão. A moça falou muito, até secar. Até sua cabeça começar a latejar, e já não querer mais raciocinar. Esgotada, deixou de lado as palavras e recolheu-se às lágrimas, reclinando a cabeça, enterrando o rosto nas mãos. "Chega por hoje", avisou a si mesma.

Tal qual um médico, o rapaz deu os últimos pontos, limpou o corte e iniciou a despedida. Ela sentiu a sinceridade do carinho fraternal com que a abraçou ("eu me importo, e não vou embora"), e segurou-o com força contra si por um último momento, em nome dos bons momentos.

E se foram. Cada qual para seu canto. Subindo sozinha as escadas, com a pintura dos olhos toda borrada, recobrou a respiração. Game over . Daí para frente, caberiam as análises, as respostas atrasadas, as lembranças... "O fim tem dessas coisas", pensou. As lágrimas traziam desse alívio de que a tensão se foi, mesmo que o resultado tenha sido adverso.

Foi o aniversário mais triste de sua vida...

(Originalmente postado em 18/out/05)

Nenhum comentário: